Diniz, Mariana de Oliveira & Ferreira, Luís Carlos de Souza. Biotecnologia aplicada ao desenvolvimento de vacinas. Estud. av. vol.24 no.70 São Paulo 2010.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142010000300003
RESUMO
As vacinas representam a estratégia de intervenção com a melhor relação custo-benefício até hoje aplicada em saúde pública. Avanços biotecnológicos em diversas áreas de pesquisa têm contribuído para o desenvolvimento de formulações mais seguras e eficazes. Além disso, a aplicação de ferramentas biotecnológicas no desenvolvimento de vacinas tem provocado mudanças na maneira como pensamos e produzimos esses reagentes tanto para uso em humanos como em animais. Essas tecnologias trazem perspectivas de que, em futuro próximo, vacinas para o controle de doenças infecciosas e degenerativas ainda não passíveis de prevenção possam estar disponíveis. Em particular, vacinas com efeitos terapêuticos, embora representem um enorme desafio a ser vencido, tornam-se cada vez próximas da realidade e, certamente, terão um impacto enorme no tratamento de diversas doenças, como em algumas formas de câncer.
Palavras-chave: Vacinas, Biotecnologia, HPV, Câncer, Vacinas terapêuticas.
ABSTRACT
Vaccines represent the intervention strategy with the best cost-benefit ratio so far applied in public health. Biotechnological advances in various areas of vaccine research have contributed to the development of safer and more effective formulations. Moreover, application of biotechnology tools to vaccine development has caused changes in the way we think and produce these reagents both for use in humans and animals. Such technologies bring renewed perspectives that, in the near future, vaccines for the control of several non-preventable infectious and degenerative diseases will be available. In particular, the development of vaccines with therapeutic effects, although representing a huge challenge, are getting closer to reality and will have a tremendous impact in the treatment of several diseases such as some cancer forms.
keywords: Vaccines, Biotechnology, HPV, Cancer, Therapeutic vaccines.
UM DOS IMPACTOS causados pela revolução biotecnológica moderna foi uma mudança significativa na maneira como pensamos e desenvolvemos novas vacinas. Tais mudanças refletem avanços na descoberta de novos antígenos, adjuvantes, vetores ou sistemas de entrega. Embora boa parte das vacinas atualmente administradas em crianças e adultos ainda seja fruto de metodologias desenvolvidas em meados do século XX, espera-se que os próximos anos tragam um número cada vez maior de novas vacinas mais seguras e eficazes geradas a partir de técnicas de manipulação genética e produção de proteínas recombinantes em sistemas heterólogos. Neste breve relato, discutiremos alguns aspectos dessa mudança de práticas e conhecimentos aplicados ao desenvolvimento de vacinas. Em particular, enfatizaremos pesquisas voltadas para geração de vacinas terapêuticas para o controle de tumores e sua aplicação em tumores induzidos pelos vírus do papiloma humano.
A história das vacinas e sua aplicação na prevenção de doenças infecciosas acumulam mais de 200 anos de dedicação e muito trabalho. Iniciada pela genialidade e pelo empirismo direcionados de médicos e pesquisadores, como Edward Jenner e Louis Pasteur, observa-se nessa área um belo exemplo do reducionismo aplicado à prática médica. Desde as primeiras vacinas baseadas em patógenos, sejam eles bactérias ou vírus, atenuados ou inativados, muito reativos e, em alguns casos, pouco eficientes, a pesquisa vacinal moveu-se na direção de empregar frações cada vez menores desses patógenos na busca de aumentar a segurança sem comprometimento da eficácia. Dessa forma, é comum classificarmos as vacinas em três grandes grupos (ou gerações) em razão das estratégias ou dos conceitos utilizados na preparação do princípio ativo, os antígenos vacinais. As vacinas de primeira geração representam aquelas que empregam na sua composição o agente patogênico na sua constituição completa, mas submetido a tratamentos que levam à inativação ou à atenuação dos micro-organismos. Nessa categoria, também deve ser destacada a estratégia em que micro-organismos não patogênicos derivados de outros hospedeiros são utilizados como antígenos para vacinas voltadas para o controle de doenças causadas por patógenos assemelhados. Essa abordagem é bem exemplificada pelas vacinas da varíola, baseada em vírus vaccínia isolados de bovinos, e da vacina contra a tuberculose que também emprega uma bactéria originalmente obtida em bovinos, o Mycobacterium bovis (BCG). Nesse grupo, destacam-se também as vacinas voltadas para a prevenção da coqueluche ou pertússis (vacinal celular), as vacinas contra varíola, poliomielite, sarampo, rubéola, adenovírus, entre outras.
A segunda geração surgiu com a noção de que, em alguns patógenos, a proteção vacinal pode ser obtida após a indução de anticorpos voltados para um único alvo, como uma toxina, responsável pelos sintomas da doença, ou açúcares de superfície que permitem ao sistema imune do hospedeiro neutralizar e eliminar bactérias que de outra forma se propagariam rapidamente antes de serem notadas por nossas principais linhas de defesa imunológica. Nesse grupo, destacam-se vacinas acelulares que empregam toxoides (toxinas purificadas e inativadas por tratamento químico), proteínas e polissacarídeos purificados, como as antitetânica, antidiftérica, hepatite B e as vacinas voltadas para o controle da meningite meningocócica e da pneumonia.
Por fim, a terceira e mais recente geração de vacinas parte de um conceito inovador que a diferencia de uma forma radical das outras gerações vacinais. Nessas vacinais, emprega-se a informação genética do patógeno responsável pela codificação de proteínas que representem antígenos relevantes para a proteção. Em geral chamadas de vacinas de DNA ou gênicas, as vacinas de terceira geração foram descobertas de forma empírica no começo da década de 1990 em testes inicialmente voltados para a pesquisa de terapias genéticas em que se introduzem no hospedeiro genes que substituirão a informação genética defeituosa originalmente presente no indivíduo.
O conceito vacinal surgiu da observação de que animais inoculados com plasmídeos que transportam genes que são expressos em células tranfectadas, ou seja, células em que o DNA injetado conseguiu penetrar as membranas citoplasmática e nuclear e utilizar o maquinário enzimático necessário à transcrição e tradução, produzem o antígeno, que irá desencadear uma série de respostas imunológicas como anticorpos, fundamentais para garantir a proteção contra patógenos que circulam na corrente sanguínea, células citotóxicas, com potencial de identificar e destruir células infectadas mesmo na ausência de patógenos circulantes, e memória, fundamental para um efeito profilático duradouro. Embora as perspectivas iniciais depositadas nas vacinas de DNA tenham sido frustradas pela baixa imunogenicidade de diversas vacinas submetidas a testes clínicos, os resultados indicam que essas vacinas podem ser instrumentos excelentes para a ativação de respostas imunológicas citotóxicas e, consequentemente, controle de patógenos de replicação intracelular como os vírus, algumas bactérias e certos tipos de câncer.
O advento da biotecnologia moderna, em particular a disseminação das técnicas de manipulação genética, alterou de diferentes maneiras a pesquisa e o desenvolvimento de vacinas, sejam elas de primeira, segunda ou terceira geração. Por meio de estratégias de clonagem gênica e mutagênese, podemos gerar micro-organismos atenuados (vírus e bactérias) de forma precisa e com mais segurança. Patógenos atenuados empregados nas vacinas de primeira geração podem reverter ao estado nativo virulento. Como, em muitos casos, não se conhece a natureza da alteração genética sofrida pelo microrganismo durante a atenuação, a possibilidade de reversão à virulência, embora pouco provável, é uma realidade. As técnicas atualmente disponíveis para manipulação genética permitem obter, com relativa facilidade, mutantes atenuados nos quais genes envolvidos com a patogenicidade ou metabolismo primário são inativados de forma a não comprometerem a viabilidade do organismo, mas torná-los incapazes de causar doença. No entanto, os custos elevados envolvidos nos testes clínicos e o uso consagrado de determinadas formulações, como os vírus da poliomielite, sarampo, febre amarela, a bactéria Mycobacterium tuberculosis, entre outros, diminuem o interesse de indústrias e laboratórios em investir nessas novas formulações vacinais (Tabela 1).
A biotecnologia revolucionou as vacinas de segunda geração. Em uma fase inicial, essas vacinas se restringiam à utilização de toxinas inativadas, como na vacina para tétano e difteria, e em um segundo momento, polissacarídeos purificados. A utilização de proteínas purificadas a partir de vírus ou bactérias se limitava a situações em que era possível cultivar e purificar antígenos específicos, como algumas toxinas, ou obtê-los a partir do soro de pacientes infectados, como no caso do vírus da hepatite B. Com o aprimoramento das técnicas de produção de proteínas recombinantes por meio de sistemas de expressão heteróloga, bactérias, leveduras, células de mamíferos e insetos são usados como fonte para os antígenos a serem incorporados nas formulações vacinais. De fato, a fronteira da vacinologia que hoje recebe mais investimentos e desperta interesses tanto pela segurança de uso como no retorno financeiro está calcada na geração de vacinas de subunidades que utilizam antígenos recombinantes: a vacina voltada para o controle da hepatite B e, mais recentemente, a vacina preventiva para infecções com vírus do papiloma humano (HPV) (Tabela 1).
As vacinas de DNA surgiram como resultado dos avanços biotecnológicos em DNA recombinante. A informação genética, responsável pela codificação de antígenos com aplicação vacinal, é clonada e propagada em linhagens de Escherichia coli, um habitante inofensivo de nossa microbiota intestinal. O procedimento de produção é relativamente simples e menos oneroso do que aquele envolvido na obtenção de proteínas recombinantes. Além disso, algumas características de modulação de resposta imune das vacinas de DNA tornaram-nas um instrumento valioso para o desenvolvimento de vacinas com características terapêuticas. Sem dúvida, mais do que uma vacina específica, as vacinas DNA representam uma forma alternativa de desenvolver imunoterapias viabilizadas graças à introdução das técnicas de DNA recombinante à pesquisa vacinal (Tabela 1).
Vacinas com propriedades terapêuticas
Vacinas terapêuticas têm como objetivo controlar infecções crônicas ou doenças degenerativas instaladas no indivíduo a ser tratado. Nesse aspecto, a definição de vacina terapêutica se confunde com o conceito de terapia gênica, particularmente quando se lança mão de vacinas de DNA ou vetores vivos que, em última instância, introduzem informação genética nas células do hospedeiro que se encarregarão de produzir as proteínas que irão desencadear uma resposta imunológica capaz de reverter o quadro infeccioso ou degenerativo instalado. A base de qualquer vacina terapêutica é, portanto, reverter situações nas quais o sistema imunológico do indivíduo não foi capaz de ativar uma resposta imune na intensidade ou na qualidade adequada, o que, em geral, resulta na instalação de um quadro de tolerância imunológica. Evidentemente, a relevância do conceito vacinal terapêutico traz sentido apenas nos casos em que não existam opções terapêuticas disponíveis mais eficientes. Além disso, para que uma vacina terapêutica possa ter sucesso, deve haver evidências de que a doença e, consequentemente, o patógeno que a causou possam ser controlados pelo sistema imunológico do indivíduo, uma vez que ativado corretamente, como no caso de doenças crônicas como aquelas causadas pelos vírus da imunodeficiência adquirida (HIV), herpes humano (HSV), da hepatite B (HBV) e do papiloma humano (HPV).
Avanços no conhecimento dos mecanismos da imunidade permitiram estabelecer parâmetros importantes para uma vacina com propriedades terapêuticas. Particularmente, a caracterização do papel funcional de linfócitos T citotóxicos, assim como de outras células minoritárias do sistema imunológico com funções semelhantes, representou um passo importante para o avanço de pesquisas voltadas para o desenvolvimento de vacinas terapêuticas. Ao reconhecerem e destruírem células infectadas ou alteradas na sua composição antigênica, os linfócitos CD8+ T citóxicos representam uma formidável barreira contra patógenos que evadem outros mecanismos de defesa imunológica, como os anticorpos e o complemento, ao penetrarem e se multiplicarem no interior de células do hospedeiro.
Nos últimos anos, diversos grupos de pesquisa têm se dedicado à busca de formulações vacinais capazes de ativar de forma eficiente e duradoura linfócitos T CD8+ citóxicos, capazes de reconhecer e destruir células que expressem na sua superfície fragmentos de antígenos derivados de patógenos virais, bacterianos ou parasitários que se multiplicam em seu interior. De forma semelhante, vacinas com propriedades anticâncer têm sido investigadas há várias décadas na esperança de se encontrarem alternativas mais eficazes e menos invasivas para o tratamento de alguns tipos de câncer. Em alguns casos, o tratamento de alguns tipos de câncer se torna mais propício para uma abordagem vacinal terapêutica em função de uma origem infecciosa, como tumores associados à infecção com os vírus HBV e HPV. Nos dois casos, a disponibilidade de vacinas com características profiláticas voltadas para o controle da infecção pelos vírus torna a questão da viabilidade e relevância das vacinas terapêuticas mais complexa e, em determinadas situações, gera polêmicas interessantes sobre o papel de cada uma no controle de determinadas doenças. Nesse aspecto, a recente comercialização de vacinas profiláticas para o controle do HPV e a busca por uma alternativa vacinal com características terapêuticas para tumores associados à infecção por esse vírus representam um exemplo que merece ser analisado.
A busca por uma vacina terapêutica para o controle de tumores associados ao HPV-16
Atualmente, está bem estabelecido que o vírus do papiloma humano (HPV) é o principal agente etiológico do câncer cervical, além de outros tipos de câncer como tumores anogenitais e de cabeça e pescoço. Em relação ao câncer cervical, o vírus HPV está associado a praticamente todos os casos observados. Esse tipo de câncer apresenta grande relevância epidemiológica, representando a segunda causa de morte por câncer em mulheres no mundo, causando, aproximadamente, 270 mil mortes por ano, e cerca de 500 mil novos casos são diagnosticados anualmente (Zur Hausen, 2009).
Mais de 100 tipos de HPV foram descritos e podem ser classificados de acordo com seu potencial oncogênico. Alguns tipos de HPV podem causar verrugas genitais e lesões benignas de baixo grau, e são chamados de genótipos de baixo risco, sendo os HPV-6 e HPV-11 os mais prevalentes. Os tipos de HPV associados ao desenvolvimento de tumores do colo do útero são chamados de alto risco e os mais frequentemente encontrados são os HPV-16, HPV-18, HPV-31, HPV-33 e HPV-45. Os vírus HPV-16 e HPV-18 são os tipos mais comumente associados ao câncer cervical, somando 75% da incidência dos casos desse tipo de câncer, sendo o HPV-16 o mais prevalente no Brasil e na maioria dos países (Bosch et al., 1995). Consequentemente, esses dois tipos de HPV, particularmente o HPV-16, têm sido usados como modelo para o desenvolvimento de estratégias vacinais, sejam elas profiláticas ou terapêuticas.
Compreender a biologia molecular do vírus HPV é essencial ao desenvolvimento de vacinas. Os HPV não são envelopados e seu genoma é representado por uma dupla fita de DNA. O genoma desse vírus codifica para duas proteínas de expressão tardia, L1 e L2 (L, do inglês late), que compõem o capsídeo viral, e seis proteínas com funções reguladoras: E1, E2, E4, E5, E6 e E7 (E, do inglês early). Em particular, as proteínas E6 e E7 dos HPV de alto risco atuam na malignização celular por ligação ou inativação dos produtos de genes supressores de tumores, as proteínas p53 e pRb, respectivamente (Dyson, 1998). Dessa forma, células infectadas por HPV de alto risco podem desenvolver instabilidade genômica e replicação descontrolada que podem progredir para um câncer.
Como o câncer cervical é causado por um tipo de infecção viral, há uma expectativa de que uma vacina capaz de gerar anticorpos neutralizantes dirigidos contra as proteínas do capsídeo viral L1 e/ou L2 bloqueie a entrada do vírus e, com isso, reduza a incidência de câncer em longo prazo. Duas vacinas profiláticas baseadas em VLP (Virus Like Particles) formados pelas proteínas L1 de HPV-6, -11, -16 e 18 (Gardasil) ou HPV-16 e -18 (Cervarix) estão disponíveis no mercado. Essas vacinas têm se mostrado extremamente eficientes na indução de anticorpos neutralizantes para os vírus. Espera-se, portanto, que indivíduos imunizados com essas vacinas estejam protegidos contra a infecção pelos tipos virais usados no preparo das VLP e, consequentemente, não venham a desenvolver câncer de colo uterino no futuro. No entanto, em razão da grande variabilidade natural, a imunidade é específica para os vírus utilizados para gerar as VLP.
Mulheres que possuem lesões de alto grau ou tumores induzidos por HPV não geram partículas virais e, portanto, não seriam beneficiadas pela estratégia vacinal baseada em VLP. Ao penetrar na célula epitelial, o vírus se integra ao genoma celular e deixa de se replicar. A síntese das proteínas L é totalmente bloqueada, mas a síntese de algumas proteínas reguladoras, particularmente as oncoproteínas E6 e E7, permanece inalterada. Para esses casos, mostra-se necessária a busca de vacinas voltadas para o controle das lesões induzidas pelo HPV. Tais vacinas com características terapêuticas devem privilegiar a indução de respostas citotóxicas, de forma a levar ao reconhecimento e à morte de células infectadas. Os principais alvos para esse tipo de vacina são as proteínas E6 e E7, expressas constitutivamente nas células do carcinoma cervical.
Ainda não existem vacinas terapêuticas para tumores induzidos por HPV disponíveis no mercado, mas diversas formulações são investigadas em modelo animal e algumas já se encontram na fase de testes clínicos. Diversas abordagens foram empregadas para o desenvolvimento de uma vacina com tais características, como aquelas baseadas em peptídeos sintéticos, proteínas purificadas, vetores virais ou bacterianos, e mesmo células dendríticas ou tumorais, entre outras. Nesse contexto, as vacinas de DNA surgem como uma estratégia interessante para a geração de respostas imunes antígeno-específicas que, por sua capacidade de indução de respostas citotóxicas, atuariam somente sobre as células tumorais, evitando efeitos colaterais como os observados nos tratamento de radio e quimioterapia atualmente empregados.
Alguns grupos que pesquisam vacinas de DNA para o controle de tumores induzidos por HPV buscam estratégias que aumentem a imunogenicidade das formulações vacinais. Nesse contexto, o uso de adjuvantes ou construções que expressem proteínas híbridas em que as oncoproteínas de HPV são fusionadas a antígenos que aumentem a imunogenicidade para respostas citotóxicas tem recebido particular atenção. Uma alternativa promissora é representada por vacinas de DNA que codificam proteínas de HPV geneticamente fusionadas à glicoproteína D (gD) do vírus herpes simplex tipo I (HSV). A proteína gD possui uma região transmembrana, e, dessa forma, as oncoproteínas do HPV-16 a ela fusionadas são direcionadas à membrana das células transfectadas, reduzindo drasticamente os riscos de interação com proteínas de ciclo celular e as expondo ao sistema imunológico de forma mais eficiente.
Outros papéis adjuvantes atribuídos à proteína gD foram descritos e estão associados à capacidade de ligar-se ao receptor HVEM (Herpes Vírus Entry Mediator), pertencente à família dos receptores de fatores de necrose tumoral (TNFR). Pela interação com esse receptor, foi demonstrado que a proteína gD gera sinais de estímulo para células do sistema imune por meio da ativação de um fator transcional, o NF-κB (Cheung et al., 2009). Além disso, a proteína gD aumenta a imunogenecidade de proteínas a ela fusionadas por exercer uma competição com outra proteína de membrana denominadas BTLA (B and T Lymphocyte Attenuator), um fator inibidor que suprime a ativação de linfócitos B e T por células apresentadoras de antígeno, para um mesmo sítio de ligação que as duas proteínas possuem em um outro receptor celular denominado HVEM (Herpes Vírus Entry Mediator). Como resultado final, células que expressam a proteína gD na superfície reduzem os efeitos inibitórios de BTLA e promovem uma ativação mais eficiente de linfócitos B e T (Lasaro et al., 2008).
O uso de vacinas de DNA que codificam para oncoproteínas do HPV-16 fusionadas à proteína gD do HSV-1 foi proposto pelo nosso grupo como estratégia para o controle de tumores induzidos pelo HPV-16 (Lasaro et al., 2005). Essas vacinas foram testadas em camundongos ante sua capacidade de ativar células T CD8+ antígeno-específicas e evitar a formação de tumores após o implante de células epiteliais modificadas para expressar as proteínas E6 e E7 de HPV-16, chamadas de células TC-1. Os animais imunizados com essas vacinas apresentaram indução de células CD8+ E7 específicas e 40% de efeito antitumoral terapêutico à formação de tumores após receberem quatro doses das vacinas. Nesses ensaios, as células tumorais são implantadas no animal, e, algum tempo depois, inicia-se o tratamento com a vacina de DNA, caracterizando, dessa forma, o efeito vacinal terapêutico.
A estratégia vacinal contra os tumores causados por HPV-16 foi aprimorada com a construção de uma nova vacina de DNA que expressa as oncoproteínas E5, E6 e E7 do HPV-16 fusionadas à gD do HSV-1 (Diniz et al., 2010). Os ensaios para verificação da ativação de células T CD8+ específicas para as oncoproteínas do HPV-16 mostraram que apenas uma dose da vacina foi suficiente para gerar ativação significativa de células CD8+ específicas para E6 e E7- (Figura 1A). A vacina foi capaz de gerar 100% de proteção contra tumores em animais que primeiramente foram imunizados e, subsequentemente, desafiados com as células TC-1. O efeito antitumoral da vacina foi associado à participação de células T CD8+, mas não o de células T CD4+, em ensaios nos quais essas populações celulares foram removidas diferencialmente com anticorpos (Figura 1B). Além disso, com esse vetor foi possível obter 70% de proteção em camundongos desafiados com células TC-1 e, posteriormente, imunizados com três doses da vacina.
Citocinas relacionadas à ativação ou proliferação de células do sistema imune podem ser empregadas como estratégia alternativa para aumentar a resposta induzida por uma vacina de DNA. Tomando por base estudos anteriores, desenvolvemos uma terceira versão das vacinas de DNA para tumores induzidos por HPV-16, que emprega a coadministração de plasmídeos que expressam as citocinas IL-12 ou GM-CSF em combinação com os plasmídeos que expressam a E7 ou E7E6E5 de HPV-16 fusionados à gD de HSV-1. Utilizando esse sistema de imunização combinado, foi possível obter um efeito protetor terapêutico máximo, ou seja, 100% de camundongos livres de tumor, com a coadministração do plasmídeo que expressa IL-12 ou GM-CSF com o plasmídeo que expressa o antígeno alvo (Figura 2). De forma marcante, o aumento do efeito antitumoral da vacina permitiu a redução do número de doses da vacina necessária à eliminação completa dos tumores, e, com apenas uma dose, foi possível conferir proteção terapêutica a todos os animais implantados com células tumorais.
As evidências geradas por esses estudos demonstram que a estratégia vacinal proposta se mostra muito promissora como uma alternativa imunológica para o controle de tumores induzidos por HPV-16, com resultados superiores aos publicados na literatura para outras formulações testadas em modelo animal. Estudos adicionais estão sendo realizados no sentido de viabilizar o teste das formulações em condições clínicas. Para isso, modificações adicionais serão necessárias de forma a permitir aumento de imunogenicidade em seres humanos e redução de reações inflamatórias pelo uso de material obtido em condições de boas práticas de produção.
Considerações finais
A biotecnologia tem contribuído de forma decisiva para o aprimoramento de processos relacionados ao desenvolvimento e à produção de novas vacinas ou ao aprimoramento de vacinas já existentes para que se tornem mais seguras e eficazes. A disponibilização de vacinas profiláticas e a perspectiva de desenvolvimento de vacinas com efeito terapêutico para tumores associados ao HPV ilustram de forma clara o impacto que a biotecnologia moderna traz para o campo da pesquisa vacinal. Dados epidemiológicos divulgados pelo Instituto Nacional do Câncer (Inca) revelam que, no Brasil, a cada 100 mil mulheres cerca de 20 desenvolvem câncer de colo uterino. Ao todo são diagnosticados 20 mil novos casos por ano, uma incidência duas vezes maior do que a registrada em países mais desenvolvidos. Esses dados destacam o impacto que vacinas voltadas para o controle de tumores associados ao HPV podem ter no país.
A disponibilização de vacinas profiláticas para a infecção com dois tipos de HPV criou uma grande expectativa sobre uma futura redução no número de vidas perdidas para a doença e na redução do custo econômico associado ao tratamento de pessoas com lesões em estágios mais avançados do câncer. A realidade, no entanto, demonstra que o maior impacto das formulações vacinais lançadas no mercado tem sido econômico, mas para as companhias farmacêuticas que as produzem. O custo elevado da vacina (aproximadamente US$ 1.000,00) por pessoa tem permitido aos fabricantes obter lucros superiores a US$ 3 bilhões anuais, fato que tem despertado o interesse de muitos laboratórios em investir em vacinas capazes de conferir retornos financeiros elevados. Por sua vez, a real contribuição dessas vacinas para a redução do impacto da doença no mundo é ainda uma dúvida, pois as pessoas atendidas são as menos propensas a sentir os desdobramentos mais sérios da doença.
O desenvolvimento de uma vacina com propriedades terapêuticas para controle do câncer associado à infecção pelo HPV traz perspectivas interessantes em relação ao real benefício em termos de controle da doença. Ao contrário das vacinas profiláticas, espera-se que as vacinas terapêuticas confiram proteção a diversos tipos de HPV e previnam o surgimento de tumores em indivíduos já infectados. A disponibilização do tratamento, assim que comprovada sua eficácia terapêutica em ensaios clínicos, para o sistema público de saúde poderá ter um impacto imediato na redução no número de mortes associadas à doença, além de reduzir drasticamente o custo e os traumas associados ao tratamento de tumores em estágios avançados de crescimento. No entanto, como toda pesquisa em estágio inicial de desenvolvimento, o aporte de recursos necessários à comprovação dos efeitos clínicos é fundamental para que tais perspectivas possam ser concretizadas.
Referências
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Recebido em 6.10.2010 e aceito em 13.10.2010.
Mariana de Oliveira Diniz é professora no Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. @ –mdiniz@usp.br
Luís Carlos de Souza Ferreira é professor no Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. @ –lcsf@usp.br